Quem é Maria? Maria é um dom de Jesus ao pobre Lázaro. Ele me havia dito… Quanto tempo já faz! “O vosso perdão fará mais do que tudo. E me ajudará.” Ele me havia prometido. “Ela será a tua alegria.” E naquele dia em que eu estava inquieto, porque ela havia trazido a sua vergonha para cá, para perto do Santo, que palavras para convidá-la a voltar! A Sabedoria e a Caridade se haviam unido para tocarem o coração dela. E o outro, o que encontrou em mim que me oferecia por ela, para a sua redenção? Eu quero viver, gozar por vê-la já redimida! Quero com ela louvar o Senhor! Rios de lágrimas, de afrontas, de vergonha, de amargura… tudo isso penetrou em mim e matou minha vida por causa dela… Eis o fogo, o fogo da fornalha. Volta com a lembrança… Maria de Teófilo e de Euquéria, minha irmã, a prostituta. Ela podia ser rainha e se tornou uma lama, que até o porco espezinha. E minha mãe, que está morrendo. E não poder mais andar pelo meio do povo sem ter que suportar os seus escárnios. Por causa dela! Onde estás, infeliz? Faltava-te o pão, por acaso, para te venderes como te vendeste? Que foi que tu sugaste do peito de tua nutriz? Que foi que tua mãe te ensinou? Luxúria uma? Pecado a outra? Vai-te embora, desonra de nossa casa!
Sua voz é um urro. Parece um doido.
Marcela e Noemi apressam-se em ir fechar hermeticamente as portas, em fazer baixar os toldos pesados para abafar as ressonâncias, enquanto o médico, que havia voltado ao quarto, inutilmente se esforça para acalmar o delírio, que vai ficando cada vez mais furioso.
Maria, calada por terra como um trapo, está soluçando, sob a inexorável acusação do moribundo, que prossegue:
– Um, dois, dez amantes. O opróbrio de Israel passava de braço em braço… Sua mãe estava morrendo e ela fremia em seus amores obscenos. Fora! Vampiro! Tu sugaste a vida de tua mãe. Destruíste a nossa alegria. Marta foi sacrificada por tua causa. Ninguém se casa com a irmã de uma meretriz. Eu… Ah! Eu… Eu, Lázaro, cavalheiro, filho do Teófilo. Sobre mim cuspiam os moleques de Ofel! “Eis aí o cúmplice de uma adúltera e de uma imunda”, diziam os escribas e fariseus, e sacudiam suas vestes para darem a entender que repeliam o pecado de quem estava sujo pelo contato com ele! “Eis aí o pecador! O que não sabe castigar o culpado é culpado com ele”, urravam os rabis quando eu subia para o Templo, e eu suava, sob o fogo das pupilas sacerdotais… O fogo. Tu! Tu vomitavas o fogo que tinhas dentro de ti. Porque és um demônio, Maria. Uma suja é o que és, uma excomungada. O teu fogo se alastrava, atingindo a todos, porque o teu fogo era feito por muitos fogos, e deles havia também para os luxuriosos, que pareciam uns peixes presos no tresmalho quando tu passavas… Porque foi que não te matei? Eu me queimarei na geena por te ter deixado viver arruinando tantas famílias, dando escândalo a milhares… Quem é que diz: “Ai daquele pelo qual é dado o escândalo?” Quem é que diz isso? Ah! O Mestre! Eu quero o Mestre! Eu o quero! Para que me perdoe. Eu quero dizer-lhe que não a podia matar, porque a amava. Maria era o sol da nossa casa. Eu quero o Mestre. Por que Ele não está aqui? Eu não quero viver, mas ter o perdão do escândalo que eu dei deixando viver o escândalo. Já estou no fogo. É o fogo de Maria. Ele me pegou. Pegava em todos. Para proporcionar luxúria a ela, ódio a nós e para queimar minhas carnes. Fora, estas cobertas! Fora tudo! Eu estou no fogo! Ele invadiu minha carne e meu espírito. Estou perdido por causa dela. Mestre! Mestre! O teu perdão. Ele não vem. Não pode vir à casa de Lázaro. Esta casa virou um esterqueiro, por causa dela. Então… eu quero esquecer. De tudo. Tudo. Já não sou mais Lázaro. Dai-me um pouco de vinho. Diz Salomão: “Dai vinho aos que estão com o coração dilacerado, para que bebam, e se esqueçam de sua miséria, e não se lembrem mais de sua dor.” Não quero mais lembrar-me. Todos dizem: “Lázaro é rico, é o homem mais rico da Judéia.” Não é verdade? É tudo palha. Não é ouro. E as casas? São nuvens. Os vinhedos, os oásis, os jardins, os olivais? São nada. São enganos. Eu sou Jó. Não tenho nada. Eu tinha uma pérola. Como era bonita! Tinha um valor infinito. Era o meu orgulho. Chamava-se Maria. Não a tenho mais. Estou pobre. O mais pobre de todos, o mais enganado de todos… Até Jesus. Até Jesus me enganou. Porque Ele disse que a devolveria a mim, ela, pelo contrário, ela… onde está ela? Lá está ela. Parece uma pagã a mulher de Israel, a filha de uma santa! Lá se vai ela, seminua, embriagada, louca… E ao redor dela… com os olhos pregados sobre o corpo nu de minha irmã, lá se vai a malta dos seus amantes… E ela está rindo por ser admirada e desejada assim. Eu quero dar uma reparação pelo meu delito. Quero andar por todo Israel, dizendo: “Não vades para perto da casa de minha irmã. A casa dela é o caminho do Inferno, que desce para os abismos da morte.” E depois quero ir até ela e pisar nela, pois foi dito: “Toda mulher impudica será pisada como o esterco na estrada.” Oh! Tens ainda a coragem de te mostrares a mim, que morro desonrado e destruído por ti? A mim, que ofereci a minha vida para resgatar a tua alma e sem chegar a nenhum resultado? Como é que eu te queria, dize? Como é que eu te queria, para não morrer assim? Aqui está como é que eu te queria: como a Susana, a casta. Dizes que te tentaram? E não tinhas um irmão para te defender? Susana, vendo-se sozinha, respondeu: “Melhor é para mim cair em vossas mãos, do que pecar na presença do Senhor”, e Deus fez que brilhasse a inocência dela. Eu teria dito aquelas palavras aos teus tentadores e te teria defendido. Mas tu! Tu saíste de lá. Judite era viúva e morava num quarto apartado, com o cilício nos flancos e jejuando, e gozava de muita estima por parte de todos porque ela temia o Senhor, e dela se canta: “Tu és a glória de Jerusalém, a alegria de Israel, honra do nosso povo, porque agiste virilmente e o teu coração foi forte, pois amaste a castidade e, depois do casamento, não conheceste outro homem. Por isso a mão do Senhor te tornou forte, e serás bendita para sempre.” Se Maria tivesse sido como Judite, o Senhor me teria curado. Mas ela não pôde, porque não quis. Por isso, eu não pedi para ficar são. Não pode haver milagre onde ela está. Mas morrer, sofrer, não é nada. Dez e dez vezes a mais, e uma e mais uma morte, contanto que ela se salve. Oh! Altíssimo Senhor. Todas as mortes! Todas as dores! Contanto que Maria se salve. Gozar da presença dela uma hora, uma hora apenas. Da presença dela já tornada uma santa, pura como em sua meninice! Uma hora dessa alegria! Poder gloriar-me dela, a flor de ouro da minha casa, a gazela gentil de doces olhares, o rouxinol dos fins das tardes, a amorosa pomba… Quero o Mestre para dizer-lhe que isto é o que eu quero, Maria! Maria! Vem! Maria. Quanta dor está sentindo o teu irmão, Maria! Mas, se tu vens, se te redimes, a minha dor se tornará doce.